Carlos Magno, coroado Imperador no dia 25 de dezembro do ano 800, trouxe, sob a liderança de Alcuíno, muitos sábios para o seu reino. Amalário de Metz (780-850) foi discípulo de Alcuíno e foi com ele que começaram as chamadas “controvérsias eucarísticas”, que dominaram a teologia do século IX e tiveram uma repercussão muito forte até o século XIII. Por essa época começam as grandes questões em torno da identificação do Corpo de Cristo: aquele que nasceu na Palestina, aquele que nós chamamos de “corpo eclesial” e aquele outro chamado “corpo eucarístico” do Senhor. Qual a identidade e qual a diferença entre eles?
Amalário de Metz escreveu “Sobre os ofícios eclesiásticos” (“De ecclesiasticis officiis”, ano 823) falando do “corpo triforme” de Cristo. Isto é, na Eucaristia, o sacerdote reparte a hóstia em três pedaços: uma pequena parte é colocada no cálice, outra é comungada pelo sacerdote e pelos demais ministros, outra é levada para os doentes. Ao falar de “corpo triforme” parecia que ele estava a dizer que uma única realidade – Jesus Cristo – existiria na eucaristia de maneira simbólica. Contudo, parece que a interpretação mais correta do pensamento de Amalário é aquela segundo a qual ele não estaria afirmando que Cristo tenha três corpos, mas ele teria usado um simbolismo para desenvolver a ideia tradicional da relação entre a Igreja e a Eucaristia.
Corbie, uma abadia beneditina francesa fundada no século VII, acolheu as grandes controvérsias sobre o Sacramento da Eucaristia através de dois de seus ilustres monges: Pascácio Radberto, que chegou a ser abade, e Ratramno, monge e teólogo da corte carolíngia.
Pascácio escreveu o “Livro do corpo e do sangue de Cristo (“Liber de corpore et sanguine Christi”, ano 844). À pergunta se na Eucaristia se encontra a verdadeira carne de Cristo, Pascácio responderá que sim, mas de forma diferente como se encontrava na Palestina. Isto é, o mesmo Cristo, porém de forma diferente. Para o abade de Corbie isso só é possível graças ao poder miraculoso de Deus.
Como? As espécies, isto é, aquilo que vemos antes e depois da consagração permanecem, mas pela fé cremos que é Cristo, pois de fato aconteceu, pela consagração, uma mutação interior. Sendo assim, há verdadeira conversão, pois se “mudam” (“transferatur”) o pão e o vinho no corpo e no sangue de Jesus Cristo. A Eucaristia, portanto, é realidade e figura: realidade é Jesus Cristo verdadeiramente presente; figura é a própria hóstia enquanto depois de consagrada leva o crente à realidade que contém, ou seja, a verdadeira e mesmíssima carne de Cristo, porém em mistério. Dito de outra maneira, a realidade se exprime quando afirmamos que é a verdadeira e mesma carne de Jesus Cristo; a figura, no mistério que ela contém, pois é figura de uma realidade.
Com a fundação do Mosteiro de Cluny e sua rápida expansão, a doutrina de Pascácio se difundiu rapidamente. Nos mosteiros de Bec e de Cluny, os monges começam a dobrar o joelho diante da Eucaristia e a incensar o Sacramento; começam também o costume de acender uma lâmpada diante do Sacrário. A partir do século XII começa o costume de elevar a Eucaristia após a consagração.
Ratramno também escreveu um tratado intitulado “Sobre o corpo e o sangue de Cristo” (“De corpore et sanguine Christi”, ano 859). Contudo, ainda sendo da mesma abadia, Ratramno e Pascácio não se entendem teologicamente. Para Ratramno, a verdade é o que os sentidos percebem e aparece claramente aos sentidos. Aplicando esse conceito de verdade à Eucaristia: o que aparece aos sentidos? As espécies. Logo, à pergunta se na Eucaristia se encontra a verdadeira carne de Cristo, Ratramno responderá que não, evidentemente.
Esse segundo monge dá essa resposta não porque ele não acreditasse no mistério da Eucaristia, mas porque o corpo eucarístico é invisível, isto é, não percebido pelos sentidos. Logo, não pode ser – segundo Ratramno – o mesmo que se encontrava na Palestina. Para que a hóstia e o vinho contenham o Corpo e o Sangue de Cristo, é necessário que haja uma conversão das espécies, porém – dirá Ratramno, isso acontece de maneira espiritual.
Com uma leitura demasiado racionalista e sem levar em conta a imperfeição da terminologia da época, poderíamos pensar que Ratramno comete um erro na fé. Contudo, hoje em dia os autores são unânimes em dizer que Pascácio e Ratramno estão defendendo a mesma coisa, contudo não se entendem devido à terminologia da época. E, contudo, o pensamento de Pascácio é, teologicamente, mais claro.
Ainda que Ratramno não seja herege, abriu a possibilidade de entender a Eucaristia em sentido simbólico. De fato, Berengário (1000-1088), cônego de Tours, afirmou claramente que a Eucaristia seria um símbolo. Dentro de sua dialética, Berengário dizia que a razão é o guia supremo na percepção da verdade. Junto a este princípio, estabeleceu também que conhecimento é igual a experiência sensível; sendo assim, a substância será algo perceptível e sensível aos sentidos. Além disso, como Cristo está localizado no céu, é impossível, segundo o cônego de Tours, que o esteja na terra. Nessa lógica, portanto, Cristo não estaria presente na Eucaristia. Berengário nega então a conversão eucarística.
No século XII, os teólogos escreveram muito sobre a Eucaristia, precisamente para dar soluções aos questionamentos feitos pela heresia de Berengário. A palavra “transubstanciação” aparece primeiramente nos escritos de Rolando de Bandinelli, o futuro Papa Alexandre III, e ganhou carta de cidadania. No Magistério, a palavra transubstanciação aparecerá pela primeira vez no Concílio de Latrão IV, no ano 1215.
John Wycliffe (1320-1384), inglês, não aceitava a desaparição da substância do pão e do vinho nem a permanência dos acidentes sem sujeito de adesão que subsista por detrás. Santo Tomás de Aquino afirmara a doutrina segundo a qual os acidentes permanecem sem sujeito no qual possam inerir, o qual seria possível somente por milagre. Wycliffe, em sua obra “Sobre a Eucaristia” (1370), rechaza a teoria tomasiana, pois segundo ele tal coisa seria metafisicamente impossível. Com tudo isso, Wycliffe defenderá que Cristo está na Eucaristia, não substancialmente, mas em sacramento e em sinal apenas.
Talvez a novidade John Huss (1369-1415), nessa polêmica, seja apenas o pedido de que também os leigos possam beber do cálice, baseando-se na Escritura e na Tradição primitiva da Igreja. Questão meramente disciplinar que, pelo ardor da polêmica, se converteu numa questão fundamental. Se bem é sabido que, atualmente, não haveria nenhum problema dar a comunhão sob as duas espécies, ficando a salvo a doutrina católica e a disciplina da Igreja, não era assim naquele tempo.
Uma consequência da lógica da fé para nós é que já que a Eucaristia é Jesus Cristo, com seu Corpo, Sangue, Alma e Divindade, temos que tratá-lo como o que ele é: verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Uma das primeiras atitudes diante de Jesus Sacramentado é a adoração. Não deixemos de adorá-lo, especialmente no Santo Sacrifício da Missa: vamos nos ajoelhar na hora da consagração; de preferência, vamos receber a sagrada comunhão de joelho; comunguemos somente na boca para evitar cair as pequenas partículas que se soltam da hóstia santa; visitemos o Santíssimo Sacramento do Altar com frequência. Amemos quem tanto nos amou a tal ponto de ficar esperando por nós todos os dias em nossos Sacrários: Jesus Eucarístico!
Pe. Françoá Costa
28 de setembro de 2023
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